Comunista "desde que nasceu", o arquiteto
Oscar Niemeyer, morto nesta quarta (dia 5) aos 104 anos
, dizia ver o homem como "um ser completamente abandonado", e que
entendia a vida como "um sopro, um minuto" - justificando assim sua
falta de interesse pelo dinheiro.
Essas afirmações foram feitas durante uma entrevista a
Isabel Murrey, da BBC Brasil, em 2001, por conta do aniversário de 41
anos da construção de Brasília. Niemeyer falou sobre arquitetura,
Brasília, sua relação com o ex-presidente Juscelino Kubitschek,
comunismo e carreira. Disse que gostaria de ser lembrado não como uma
pessoa famosa, mas como alguém que passou pela Terra como todos os
outros.
Pergunta: Como foi a criação de Brasília?
Oscar Niemeyer -
Brasília começou na Pampulha (conjunto arquitetônico de Belo
Horizonte), em 1938. Nessa ocasião, fui chamado para fazer o conjunto da
Pampulha, e durante três anos trabalhei com (o ex-presidente) Juscelino
(Kubitschek) lá. Foi o primeiro trabalho que ele realizou como homem
público e também meu primeiro trabalho como arquiteto. Na Pampulha eu
comecei essa arquitetura que mais me agrada, mais livre, mais ligada à
curva, mais emocional, procurando a invenção arquitetônica.
E como a Pampulha fez muito sucesso, tempos depois, quando resolveu
fazer Brasília, Juscelino foi me procurar na minha casa nas Canoas. Ele
me contou que iria construir a nova capital, que seria uma cidade
fantástica, que tinha que fazer tudo em três anos, e a coisa começou... A
primeira vez que ele foi a Brasília, eu fui junto, de avião, com os
ministros dele. E eu fiquei espantado, achei longe demais, o fim do
mundo. E realmente quando começaram os trabalhos e tive que ir para
Brasília, era uma solidão terrível. A gente não tinha comodidade nenhuma
para viver, ficava nuns barracões de zinco. Mas havia entusiasmo,
vontade de fazer a coisa. E Juscelino se empenhava, estava presente.
O sonho de Juscelino, que Brasília levasse o progresso ao interior, se
realizou. Outro dia fui a Goiânia e vi. Essa cidade durante a construção
de Brasília era um arrabalde, uma cidadezinha qualquer, hoje é uma
cidade grande, com progresso, prédios grandes, parques, cinema, tudo. É
que a ideia de levar o progresso para o interior realmente se realizou.
Agora o resto é que Brasília foi um momento de entusiasmo, de otimismo, e
isso foi muito bom pra nós. E ficou essa idéia, que pela primeira vez
se fez uma cidade em três anos. Deu uma idéia ao povo brasileiro que nós
podemos fazer qualquer coisa.
Pergunta: Quanto o senhor ganhou para fazer Brasília?
Oscar Niemeyer -
Eu ganhava em Brasília salário de funcionário. Então eu fechei meu
escritório e Brasília só me deu prejuízo. Uma noite, durante os
trabalhos, Juscelino me ligou e disse "Niemeyer, você está ganhando
muito pouco, eu quero que você faça os projetos do Banco do Brasil e do
Banco de Desenvolvimento Econômico pela tabela do Instituto de
Arquitetos". Eu disse: "Não, não faço. Sou funcionário, não faço
trabalho que não seja os que tenho que fazer aí mesmo." E esse foi o
clima sob o qual Brasília foi feita - de muito entusiasmo, de muito
desinteresse por dinheiro.
Pergunta: Se Brasília fosse construída hoje, o que seria feito diferente?
Oscar Niemeyer -
Ah, não sei... Se tivesse mais tempo seria diferente, ela foi feita às
pressas. Talvez eu propusesse fazer somente os prédios governamentais e
hotéis. Porque quando chegou nessa fase de fazer a cidade, com ruas e
tudo, a arquitetura se desmereceu um pouco. Mas ficou esse exemplo. Quem
quiser criticar Brasília, tem poucos argumentos. Primeiro, porque foi
fantástico construir uma cidade em três anos. E segundo porque quem for a
Brasília, pode gostar ou não dos palácios, mas não pode dizer que viu
antes coisa parecida. E arquitetura é isso - invenção.
Pergunta - Que importância teve o arquiteto francês Le Corbusier no seu trabalho?
Oscar Niemeyer -
Acho que ele foi um arquiteto muito importante. Mas a minha arquitetura
foi diferente, muito diferente da dele. A dele era mais pesada,
predominância do ângulo reto... Acho que a única influência que eu tive
dele foi no dia que me disse: "Arquitetura é invenção". E isso eu tenho
tomado como norma quando faço um trabalho. A preocupação é fazer
diferente.
Pergunta - O senhor ainda é comunista?
Oscar Niemeyer -
Eu nasci comunista. Meu avô foi ministro do Supremo Tribunal por muitos
anos. Quando ele morreu, só ficou a casa em que morávamos, hipotecada.
Por isso tenho muito respeito pelo meu avô Ribeiro de Almeida, porque
ele foi um sujeito importante na vida pública, mas morreu teso. Eu não
dou a menor importância a dinheiro. Nem à própria vida. A vida é um
sopro, um minuto. A gente, nasce, morre. O ser humano é um ser
completamente abandonado...
Pergunta - Não é anacrônico, no ano 2001, continuar com idéias comunistas?
Oscar Niemeyer -
Não. O ridículo é criticar isso. Porque a idéia do comunismo está lá.
Existe, foi criada por Lênin, por Stalin. Transformaram matéria de
mujiques (camponeses russos) na segunda potência, foram à Lua, venceram a
guerra... Quem venceu a guerra não foram os americanos, foram os
comunistas, foi o Exército de Stalin que reagiu. Essa ideia está no
coração do povo soviético. O comunismo que vai vir depois não é esse
comunismo que alguns dizem que vai ser diferente. É o comunismo dos que
conheceram um período de mais apoio, de ter sua casa, num clima mais
plural, esse é o regime que eles querem.
Não quero discutir Stalin. Eu acho que quem pode dizer se Stalin foi
bom ou ruim é o povo soviético. Há pouco tempo esteve em meu escritório
um homem que está lutando pela volta do comunismo. Quando o vi muito
desenvolto, eu perguntei "E Stalin?". Ele disse: "Estamos de acordo com
tudo o que ele disse e que ele fez". Mas esse negócio de Stalin não é
comigo. Só tenho a ver com a vida brasileira, com o povo brasileiro. Não
acredito em globalismo (globalização), não acredito em nenhuma dessas
invenções dos americanos. Só acredito que eles querem invadir a
Amazônia. O homem não consegue viver como devia viver, solidário, nesse
espaço tão curto que a gente tem para passar por aqui, sem pedir a
ninguém e com tanto problema.
Pergunta - O tema das curvas é sempre recorrente em suas obras...
Oscar Niemeyer -
A curva no concreto surge naturalmente. Se você tem que vencer um
espaço grande, a curva é a solução natural que o concreto armado pede. E
o mundo é cheio de curvas. Até já fiz um verso elogiando as curvas...
Pergunta - Como o senhor quer ser lembrado - como o arquiteto de Brasília?
Oscar Niemeyer -
Como um ser humano que passou pela Terra como todos os outros - que nasceu, viveu, amou, brincou, morreu, pronto, acabou!