segunda-feira, 25 de junho de 2012

Sem solidariedade, não há bem-viver

De acordo com o filósofo Euclides Mance, sob a perspectiva do bem-viver, o modelo de desenvolvimento atual em vez de contribuir para a expansão das liberdades públicas e privadas, promove seu enfraquecimento, com a destruição dos ecossistemas, com o enfraquecimento da democracia frente ao fluxo de capitais financeiro, dentre outras coisas.

Segundo ele, crescimento econômico não é indicador de bem-viver. Mais: o desenvolvimento econômico na ótica do bem-viver é medido pela expansão da economia solidária, pela democratização das relações de produção sob o princípio da autogestão, pelo volume de bens e serviços gerados, distribuídos e consumidos sustentavelmente para atender às necessidades materiais públicas e privadas, e pela remontagem solidária e ecológica das cadeias produtivas, reorganizando os fluxos econômicos para que sejam de proveito de todos.
Rede Mobilizadores - Em breves linhas, em que prerrogativas está baseado o modelo de desenvolvimento convencional ou atual? Quais os seus primórdios e como se difundiu pelo mundo a fora?


R.: O modelo de desenvolvimento, atualmente hegemônico, é o capitalista. Ele parte da constatação de que a natureza, as pessoas, as sociedades e o conhecimento podem ser convertidos em fator de produção econômica e que os produtos gerados pelo trabalho devem ser convertidos em mercadoria, devem ser postos à venda nos mercados para a realização do lucro, possibilitando acumulação de valor econômico por aqueles que vencem a concorrência ao disputar esses mercados.


Assim, a natureza, as pessoas, as sociedades e os conhecimentos humanos são convertidos respectivamente em capital natural, capital humano, capital social e capital intelectual a serem utilizados no processo de produção de valor econômico com fins de lucro.


Como a lógica que preside esse desenvolvimento é maximizar a acumulação do valor econômico gerado e não a realização do bem-viver de todos,  pouco importa se a natureza reduzida a capital natural será explorada de modo a destruir o equilíbrio dos ecossistemas, exauridos em sua capacidade de autorreprodução, se os resíduos gerados contaminarão os solos, as águas e o ar; pouco importa se as pessoas qualificadas como capital humano, com conhecimentos cada vez mais específicos para operar tecnologias sempre mais complexas, ficarão desempregadas; pouca importa se as sociedades terão valores culturais milenares aniquilados em estratégias globalizadas na disputa por mercados consumidores ou na exploração de fornecedores de matérias primas, gerando a concentração de riqueza pelas corporações que penetram nessas sociedades e a exclusão econômica de populações aí residentes; pouco importa se a inteligência humana será explorada para produzir quinquilharias desnecessárias para, em seguida, se tornarem desejadas por meio da publicidade. Desde que tudo isso gere lucros. Enquanto isso, centenas de milhões de pessoas não têm acesso sequer ao essencial para viver.


Os primórdios desse modelo se reportam à industrialização capitalista e ao modo de reduzir as pessoas, natureza e sociedades a meros fatores de produção - negando valores democráticos fundamentais, ao privilegiar-se o asseguramento da acumulação ilimitada de capitais em detrimento da realização de direitos humanos. O capitalismo passou por uma fase concorrencial, seguida por uma fase monopolista, sofreu novos ajustes no período recente da globalização financeira e vai entrando na fase pós-industrial. Os signos se converteram em mercadoria que, uma vez produzidos, podem ser replicados virtualmente ao infinito, possibilitando novas formas de acumulação de valor econômico a quem detenha direitos sobre seu uso e reprodução  [1]. Desse modo, nas economias assim chamadas de desenvolvidas apenas 25% dos postos de trabalho estão no setor industrial, e menos de 4%, no setor agrícola. A maioria está no setor de comércio e serviços. Ao passo que na África Subsaariana 65% dos postos de trabalho estão na agricultura e 10%, no setor industrial. Conforme indicadores do Banco Mundial sobre Economia do Conhecimento, numa escala de zero a dez, os países pobres alcançam o índice de 1,58, enquanto os países ricos chegam a 8,50.

 
A difusão desse modelo pelo mundo afora esteve associada ao colonialismo e ao neocolonialismo, que perdurou em algumas regiões africanas até os anos 70 do século passado, e à subordinação e dependência das economias periféricas em relação aos fluxos tecnológicos e financeiros globalizados. Por outra parte, seja com políticas keynesianas no século XX e, posteriormente, com a difusão do neoliberalismo a partir da década de 1980 (desregulando as economias para favorecer a circulação dos capitais em movimentos globais), essa lógica se propagou mundialmente, tratando natureza, pessoas e sociedades como fatores de produção com vistas a alcançar metas de crescimento econômico sem levar em conta os impactos ambientais, sociais e culturais e o modo como reproduzem esse modelo fundado no princípio de escassez - em que a oferta tem de ser menor que a demanda para que haja lucro. Razão pela qual a vida útil dos produtos é encurtada, e a demanda, insuflada pelo consumismo, para que se possa vender mais para aqueles que tenham dinheiro a oferecer em troca dessas mercadorias.

 
Por sua vez, os milhões e milhões de famintos e desempregados que não têm dinheiro para comprar alimento, remédios, produtos eletrônicos ou pagar pela prestação de serviços, não são tratados como atores econômicos a serem atendidos em suas necessidades - pois a fome e a vontade de saber, desacompanhadas de dinheiro para satisfazê-las não são demandas de mercado.     

 
Rede Mobilizadores - Quais as principais críticas a este modelo?


R.: Trata-se de um modelo ecologicamente insustentável. Milhares de espécies estão ameaçadas de extinção, pela devastação dos ecossistemas em que habitam, bem como pela exploração predatória dos recursos naturais. Mas também do ponto de vista econômico e social ele é insustentável, como mostram os indicadores de pobreza, desemprego e endividamento global.


Do ponto de vista democrático, este modelo está enfraquecendo a capacidade das sociedades assegurarem as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas, tal como a liberdade democrática de as pessoas se alimentarem, assegurada formalmente como um direito humano fundamental.


 Em 2008, por exemplo, os investidores nas bolsas de valores pelo mundo afora migraram seus investimentos que estavam lastreados em papéis que oscilavam negativamente, em razão da queda dos preços de imóveis hipotecados nos Estados Unidos, passando a investir no mercado futuro de commodities, não apenas metálicas, como ouro e prata, mas também commodities alimentares. A negociação de contratos futuros de arroz, milho, trigo e soja contribuiu para a elevação dos preços de alimentos no mundo todo. E, assim, enquanto investidores ganhavam dinheiro realizando lucros no mercado futuro de alimentos, milhões de pessoas no mundo não tinham mais dinheiro suficiente para comprar comida para sustentar suas famílias, pois o preço dos alimentos no presente subia acompanhando sua elevação nos mercados futuros.


Por sua vez, o endividamento das pessoas e dos Estados coloca a democracia como refém do capital. Se o capital financeiro não compra os títulos públicos, os Estados não têm como pagar suas dívidas. E, então, têm de oferecer juros ainda maiores por esses papéis. E, assim, a arrecadação que deveria assegurar o bem-público dos cidadãos, com a oferta de serviços públicos de qualidade pelo Estado, assegura a acumulação privada de lucro.


Desse modo, a democracia das instituições vai submergindo na plutocracia das corporações e do capital financeiro, que exige garantias sempre maiores de que irá receber retornos mais elevados para financiar os países e pessoas cada vez mais endividados - pois sem esse crédito não haverá solvência dos contratos nos mercados. E, sem isso, os capitais se vão e, com eles, se vai a possibilidade de seguir trilhando o mesmo desenvolvimento subalterno e dependente.


Para se ter uma ideia, a dívida pública em percentual do PIB saltou de 59%, em 2007, para 82,5% em 2011, na União Europeia. Em Euros, isso significou um salto de 7,3 trilhões de euros para 10,4 trilhões de euros em dívida pública em apenas 4 anos. No caso dos Estados Unidos, esse percentual é de 93,20%. No caso do Japão, essa cifra é de 220%. Isso significa que, para quitar essas dívidas, toda a riqueza produzida em dois anos no Japão deveria ser entregue ao capital financeiro; o mesmo teria de ser feito com 93% de toda a riqueza produzida nos Estados Unidos; ou com 82% da riqueza produzida na Europa. Uma investigação sobre os reais credores dessas dívidas, aqueles que detêm os títulos, e sobre os que ganham nesse mercado, facilmente nos levaria à lista das maiores fortunas no mundo e dos que têm maior ingerência no controle não democrático sobre a atuação dos Estados. 


A insustentabilidade desse modelo de desenvolvimento, como vemos, não é apenas ambiental, mas também econômica, social e política.

  
Rede Mobilizadoes - Como tais críticas se materializaram, em especial, nos países em desenvolvimento, como os latinoamericanos?


R.: Os países latinoamericanos foram integrados nesse modelo com o processo de colonização. Após as independências políticas, permaneceu a dependência econômica em relação às tecnologias e capitais externos. Inicialmente, esses países além de exportadores de produtos primários eram mercado consumidor de produtos industrializados gerados nos centros economicamente hegemônicos. Na sequência, em alguns setores, as empresas multinacionais passaram a obter maiores ganhos, implantando unidades produtivas nos países dependentes, havendo uma industrialização periférica subordinada aos projetos das matrizes centrais, aproveitando-se com isso a mão de obra barata nas periferias. Cresce, assim, o volume de operações de crédito fundadas no capital externo para manter a venda dos produtos dessas empresas estrangeiras nas periferias. E com as transformações tecnológicas que se desdobram a partir dos anos 1970, o processamento de informação possibilitou a interligação global dos mercados financeiros e a difusão de mecanismos especulativos, com a valorização de capitais em mercados de arbitragem, particularmente com ações relacionadas a ganhos com compra e venda de moedas, mas igualmente em operações especulativas com títulos públicos e em mercados de ações.

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